Almas Mortas: Gógol Ainda Faz Sentido Hoje?
Almas Mortas, livro de Nikolai Gógol, não é apenas um romance, mas uma crítica feroz à corrupção, ganância e hipocrisia da Rússia czarista — e do mundo moderno. Tchítchicov, um oportunista que compra servos falecidos para lucrar com um sistema podre, nunca foi tão perturbadoramente atual.
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Marcio Baião
1/30/20253 min ler
Almas Mortas: Gógol Ainda Faz Sentido Hoje?
Como essa obra clássica continua atual? Vamos conversar um pouco sobre absurdos que atravessam séculos...
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Em Almas Mortas, Nikolai Gógol expõe a podridão viva de um sistema morto.
Almas Mortas não é apenas um romance; é uma autópsia feita em uma Rússia que apodrecia ainda em vida. Gógol, com sua pena afiada como bisturi, nos entrega um relatório detalhado de uma sociedade onde tudo é negociável, até mesmo as almas.
Nada escapa à sua ironia amarga: nem os servos, reduzidos a números em um cadastro, nem os nobres, grotescos em sua ganância e estupidez, nem mesmo a estrutura estatal, que permitia que mortos fossem contabilizados para fins de impostos e transações financeiras.
O plano de Tchítchicov é simples e perverso, e sua genialidade está justamente em tirar vantagem de um sistema que já havia enlouquecido. Comprar servos que já morreram, mas ainda constam nos registros como vivos, para inflar artificialmente seu patrimônio e especular sobre eles. Especular sobre mortos — mortos que, ironicamente, continuam a render impostos ao governo como se fossem mercadorias eternamente produtivas.
Em uma sociedade assim, onde nem a morte põe fim à exploração, o que resta de dignidade? Gógol transforma Tchítchicov em um símbolo perfeito do oportunismo humano. Ele não é um vilão no sentido clássico, mas um homem feito à imagem e semelhança de seu tempo. Ele vê na burocracia estatal e na ganância dos proprietários de terra uma oportunidade, e a aproveita com uma naturalidade que beira o cômico. E é aqui que reside a verdadeira tragédia: Tchítchicov não é um outlier, mas o produto inevitável de um sistema que valoriza números acima de vidas, aparências acima de substância.
Os proprietários que ele encontra são caricaturas vivas da decadência moral da Rússia czarista. Sobakévitch trata seus servos como se fossem bois; Manílov vive em um mundo de devaneios que nunca se concretizam; Plushkin é a própria avareza encarnada, acumulando riquezas que apodrecem junto com ele. Cada um deles é grotesco à sua maneira, mas nenhum é tão grotesco quanto o sistema que lhes permite prosperar.
O absurdo do sistema feudal russo é escancarado por Gógol com uma ironia que atravessa séculos. Um governo que cobra impostos de mortos, que incentiva especulação sobre almas inexistentes, que trata vidas humanas como meros ativos financeiros, é o retrato de uma sociedade que perdeu qualquer senso de realidade.
Mas a verdadeira genialidade de Almas Mortas é que essa crítica não se limita à Rússia do século XIX. A loucura descrita por Gógol é universal e atemporal. Se o leitor de hoje não vê semelhanças entre o mundo de Tchítchicov e o seu próprio, é porque está deliberadamente fechando os olhos. As "almas mortas" podem ter mudado de forma, mas continuam a assombrar nosso mundo. Talvez sejam os algoritmos que decidem quem merece crédito ou quem tem acesso à saúde. Talvez sejam os números manipulados em balanços financeiros que mascaram a miséria humana. Ou talvez sejamos nós mesmos, reduzidos a estatísticas em um sistema que nos vê como pouco mais do que recursos descartáveis.
Gógol não entrega respostas fáceis. Ele sabia que o ciclo de corrupção, exploração e hipocrisia que descreveu não teria fim. E talvez seja por isso que queimou parte do manuscrito e morreu sem concluir a obra. Não há final para Almas Mortas, porque não há final para o tipo de podridão que ela denuncia. Esse ciclo se reinventa, renasce, persiste.
O que torna o texto ainda mais perturbador é sua capacidade de transcender o tempo. Imagine um leitor no futuro, mil anos depois de mim, segurando este mesmo texto e encontrando nele ecos de sua própria realidade. Isso não é um elogio à visão de Gógol, mas uma acusação contra a natureza humana. Não importa o quão avançada uma sociedade se proclame; enquanto valorarmos números acima de vidas, continuaremos a negociar "almas mortas".
E talvez, em algum momento, devamos nos perguntar: quem realmente está morto? Os servos nos registros, os personagens de Gógol ou nós, que seguimos fingindo que estamos vivos enquanto alimentamos sistemas que nos reduzem a poeira antes mesmo de morrer?
Se lhe parece uma observação absurda, talvez deva reler o livro... Desta feita, diante do maior espelho que puder encontrar.
Se, no dia de hoje, minha alma já estiver morta, ao invés de lhe gerar encargos, saiba que apenas lhe desejo sorte.


Marcio Baião
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Roteirista, cronista e videomaker.
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